Máquina de costuraTemos em casa uma máquina de costura que era de uma avó que nem conheci, Angelina de Fré Zanetti, mãe de meu pai. É uma máquina daquelas antigas, Singer, que exigem ser pedaladas para que costurem, com ferros prateados todos trabalhados com motivos florais, mais decalques (ou seriam pinturas?) de flores coloridas sobre fundo preto. Não sou afeita à costura, dediquei-me em outras épocas a tentar decifrar esta linguagem, mas confesso que sinto-me devorada por ela, como a velocidade com que o pano corre, com a agulha imprimindo no tecido um traçado louco, impulsionado por meus movimentos desgovernados no pedal. Apesar de tudo isso, não consigo me desfazer desta máquina. Ela parece evocar em mim alguma conexão com um antepassado que não conheci, através de um objeto que foi seu. Pela memória afetiva, o som da máquina torna-se música, evocando a presença de corpo e alma das mãos ágeis de minha outra avó, Verônica Simoncello Flaiban, uma vida inteira a fazer, refazer, consertar e remendar roupas do marido exigente, da filharada e dos netos todos. Nos capítulos mais recentes dessa nossa máquina de costura, a máquina de costura tentou se integrar aos processos de produção de nossa peça “Um Fusca em Cons(c)erto”. Minha mãe, Durvalina Flaiban Zanete, veio até em casa para nos dar instruções. Duas horas para aprender a colocar a agulha no local e posição certos, a linha na máquina, em todos os carreteis, araminhos, laçadas e sentidos corretos. Fabiano, atento, fez suas primeiras incursões na tarefa predominantemente feminina de costurar. A intenção era fazer a cortina do Fusca. O meu pensamento prático, de mulher moderna, indicava que a melhor opção era levar à costureira. Foi feito um teste para ver como o pano se comportava com a máquina. À noite, Fabiano sonhou com um franzidor, que a dona do bazar havia lhe mostrado. Imaginou a máquina em cena, numa narração de histórias, espetáculosolo, com sua presença e som. E minha mãe se prontificou a fazer as costuras em sua própria máquina, mais moderna do que a nossa.
Estamos usando um prato de alumínio que era da Gilda, Assis da Silva, mãe do Fabiano. Descobrimos nele o som que precisávamos para um toque na cena da marcha fúnebre. Depois de ter falado da presença dos homens nesta peça, vou descobrindo aqui o traço das mulheres, eu inclusa. Eu que sou das palavras aceitei o desafio que me lançou o Fabiano, meu marido e diretor desta montagem, de fazer uma peça com pouco texto. Venho aqui então a desaguar palavras para regar nosso silêncio quotidianamente construído, por incrível que pareça, com muitas falas por detrás dele, para que ele possa se fazer pleno, comunicante.
 
 
 

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